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Acordo com o medo do frio que a tua mão me leva ao respirar

Acordo com o medo do frio que a tua mão me leva ao respirar. 

No meu ventre aberto as tuas asas batem furiosas e o meu peito pára,
e cruzo as mãos sobre as águas salgadas onde os bicos dos pássaros mergulham,
agudos e ácidos.

Cruzo as mãos frias sobre o medo.

No meu ventre, aberto, as dores já não são minhas, nem a vida, mas o medo desse frio sim,
habita-me,
não há sossego onde as mãos outrora asas, 
e as asas outrora mãos, arrefecem a cicatriz
e nela, depois, se deitam.

Extingue-se a espera.

Acordo sem saber que dormia, sem saber que os sonhos já não são meus,
acordo com o bater cruzado das tuas asas nas margens a céu aberto,
acordo sem mim, com o medo do frio que a tua mão me leva ao respirar.

No meu ventre,
no sono frio,
nas efémeras asas,
no medo glandular,
existe 
a impossibilidade de um fim súbito, 
uma compaixão recusada,
e a culpa, 
esse vulto áspero fortalecido a escurecer a alma.


[poema original alterado em 2024]

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