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Mensagens

A mostrar mensagens de 2019

Fragmento.2/1

Senta-se à mesa da cozinha depois de aumentar um pouco o som do rádio. Raramente liga a televisão. Há algo que se perde das imagens e escava dentro de si um imenso vazio. Ela não sabe depois como o preencher. Serve-se então, apenas, do som. As vozes. As conversas. A música. Começa a dobrar a roupa interior e o seu gato Alberto salta para a mesa e acomoda-se por entre as meias. Olham-se. Ajeita o cabelo instintivamente quando uma ou outra canção tocam no rádio. Afaga-o junto ao pescoço, em redor das orelhas, e por fim encosta levemente alguns cabelos dispersos da sua franja com o dedo médio da mão direita. Parece que executa um código secreto, ou um pedaço de dança, que a devolve generosamente ao passado.

A essência dos dias.2

O livro aberto pousado nas suas mãos. Na macieza dos lábios as palavras mastigadas em silêncio e na dobra das pálpebras pequenos fragmentos de texto que não couberam naquelas páginas. A serena curva temporal do rosto acumula todos os pequenos assombros emocionais que cada parágrafo percorrido lhe desperta. O belíssimo rosto do ser amado a ler ilumina-se entretanto por um raio de sol que abre caminho por entre nuvens, braços, ombros e sacos. Olho a sua face iluminada.Iluminada pelo singelo e extraordinário raio de sol que ali escolheu terminar a sua viagem cósmica. Ali, no seu rosto, entre tantos outros na carruagem do comboio numa manhã de fevereiro. Ninguém atenta na singularidade deste instante. A luz que há minutos partiu de uma estrela viaja agora connosco no comboio. Ilumina-te. E na dobra do tempo, como antes na dobra das tuas pálpebras, somos atingidos pela poeira desta centelha. Somos perfeitos. Estamos numa única dimensão. Estamos em todo o lado.

A essência dos dias.1

Comove-me um casal de namorados que encontro por vezes em Algés...ele vem com ela até à estação. Param perto das portas de acesso à gare. Dão um primeiro beijo mais efusivo. Parece que estão a ouvir uma música só deles. Depois conversam um pouco. Dão mais um beijo e abraçam-se...de olhos fechados, tão apertados. Beijam-se de novo. Ela passa para o outro lado. Dizem adeus e desenham corações com as mãos. Ela diz ainda que lhe telefona quando chegar a casa. Percebemos que são duas pessoas diferentes e essa circunstância, que em tantos momentos certamente os limita, ali, no amor, torna-os mais livres e belos.

Ainda não é tarde

Os ramos tocam devagar nos vidros da janela e esse toque quase atonal marca um tempo peculiar nesta véspera de Natal. Ainda não é tarde. Eduardo espera-a. Nos últimos dias, reviveu com minúcia cada instante daquela pequena história. Reconheceram-se durante meses, cruzando os passos nos mais diversos lugares, e parecia agora claro, na lucidez própria da distância, que estes eventos poderão ter perdurado por muitos anos, sem o perceberem. Aconteceu uma vez, na carruagem do metro. Num dia de avarias e supressões, o mundo empurrou-os abruptamente um de encontro ao outro. Entreolharam-se, amachucados e suados, e logo que possível afastaram-se. Uns meses depois, no encosto de um setembro ameno, conversava na avenida com um colega de faculdade e Madalena passou por eles, arrastando consigo a última luz do dia. Ele olhou-a, sentindo-se sozinho naquele instante. Viu-a como se fosse um náufrago e aquela fosse a luz da sua salvação. Horas depois, ainda sentia na boca a estranheza