Os ramos tocam devagar nos vidros da janela e esse toque
quase atonal marca um tempo peculiar nesta véspera de Natal.
Ainda não é tarde. Eduardo espera-a.
Nos últimos dias, reviveu com minúcia cada instante daquela
pequena história.
Reconheceram-se durante meses, cruzando os passos nos mais
diversos lugares, e parecia agora claro, na lucidez própria da distância, que
estes eventos poderão ter perdurado por muitos anos, sem o perceberem.
Aconteceu uma vez, na carruagem do metro. Num dia de avarias
e supressões, o mundo empurrou-os abruptamente um de encontro ao outro.
Entreolharam-se, amachucados e suados, e logo que possível afastaram-se.
Uns meses depois, no encosto de um setembro ameno,
conversava na avenida com um colega de faculdade e Madalena passou por eles,
arrastando consigo a última luz do dia. Ele olhou-a, sentindo-se sozinho
naquele instante. Viu-a como se fosse um náufrago e aquela fosse a luz da sua
salvação. Horas depois, ainda sentia na boca a estranheza daquele momento.
Madalena não se recorda dessa tarde. Lembra-se, sim, de uma
outra à beira rio, quando olhou em redor e o viu deitado na relva, descalço, a
ler. Lembra-se do brilho daquele corpo. Lembra-se dos pés descalços, pálidos,
iluminados, e como essa luz a aconchegou, enquanto furtiva o espreitava. Horas
depois, ainda sentia dentro de si o calor daquela imagem.
E, um dia mais tarde, o mundo empurrou-os de novo um de
encontro ao outro. À saída do cinema, numa pequena cadeia absurda e cómica de
tropeções, ele desequilibra-se e ela segura-o. Não teria sido difícil, naquele
momento, seguirem cada um o seu caminho, mas foi tentador não o fazerem. Conversaram.
Tomaram café. Despediram-se sem compromissos. Sabiam que voltariam a ver-se.
Sabiam-no como uma inevitabilidade. E isso aconteceu, exatamente como era
esperado acontecer.
É véspera de Natal. Eduardo recupera uma magia perdida
algures na infância. Não sabe de onde vem. A magia. Talvez esteja guardada no
final de cada ano. Uma espécie de euforia cósmica que explodiu no início do
tempo e contaminou o Universo.
Os ramos mal se vêem mas tocam devagar nos vidros da janela.
Como se os ramos e a janela pertencessem a universos diferentes. Como os seus
encontros com Madalena. No último, embalados pelo som tranquilo e atrevido da
chuva, decidiram desafiar o destino e combinaram ficar juntos alguns dias. Era
quase Natal.
O acordo firmado assustou-os. E se não fosse suposto
acontecer assim? E se a sua missão fosse cuidarem das suas solidões e
preservarem a aleatoriedade que parecia comandar as suas vidas? Mas algo os
mudara lentamente. Uma partícula de felicidade adensou os abraços e os seus
dedos amadureciam e acumulavam promessas.
Ainda não é tarde. Parece que batem à porta. Ou serão os
ramos a tocar nos vidros?
Levanta-se e olha pela janela. Absorve a serenidade. Aquieta
o coração. Vê a forma como a paisagem acolhe a brisa alva e fria que alguém
sopra no mundo.
Batem à porta. Ele sente o tremor. Pressente o início. Ouve
chamar por si. Sorri!
Inserido na Colectânea de Contos de Natal "Natal em Palavras", lançada a 15 de dezembro de 2018 pela Chiado Books
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